O delírio de Ícaro


olhos vidrados

calados

ausência se cápsula vazia

o corpo inerte num canto

objeto denso ancorando o sutil

apenas a expectativa a incomodar

 

a breve pausa da sirene 

não interrompe a máquina fria

não cerra o algoz

um vigiar sorrateiro de feitor espreita

mas o banal insiste cada dia

o sol amorna a resistência

a sombra tíbia arrefece a vontade

 

cúmplices no pátio que confina

se indolentes calam mazelas

se ferinos despeitam os sonhos

os insurgentes carregam os delírios

mesmo os insanos se febre há

mas são os delírios que atrevem

os poucos que medram na liça

 

delírios

vagas que perseveram silenciosas

e nas arribas e arrecifes se rompem

num atroar rouco desmanchado em ecos

fúria incontida por não controlar a mecânica

o deslizar de um corpo em revolução

a indiferença da inércia

depois a espuma branca

saliva da ira

 

delírios

praias que entremeiam por vãos

areias claras e virginais

águas mansas em contraste

lençóis efêmeros de rendas brancas

falso cobrir do pudor

a mansidão se delírio também

que seja fôlego em tanta tormenta

 

a sirene estridente enfim

os olhos retomam desatinados

aflitos até entenderem

o rude juntar da alma ao corpo 

acordar e suportar o próprio ser

a condenação ao melado do suor

ao alarido que atormenta

ao retinir indiferente do aço

 

o pensamento insurge

mas o corpo maquinal inibe a lucidez

a força domina a clava dos bíceps

a destreza controla a ponta dos dedos

na luz incontida no bulbo de lâmpada

entre uma lâmina e o instante da morte

a vida se faz cada dia

 

Ícaro, filho de Dédalo

horizonte velado

musgo ascoso no paredão úmido

os sentidos mais primordiais oprimidos

apenas uma réstia dourada a trazer o sol

a sombra dilui o céu no pensar dos olhos

tempo insólito a desbotar a memória

prisão no labirinto da lógica do homem

da razão pretensa do rei

contida na forma da ilha

no limite humano dos deuses

 

e a fera antropófaga na tocaia da sombra

tão pior que a brutalidade do touro

a crueldade do homem assusta

num lado as vielas truncadas

noutro a goela impiedosa

seguir seria se perder

chegar traria a liberdade nos gestos do rei

caminhos indiferentes e doloridos

desprezados pelo delírio rebelado

 

a arte supera o entrave

o cinzel afiado transforma em mãos artesãs

o encanto acontece com penas e cera

o medo verdugo foi com a desesperança

não acossa mesmo se resto

 

a goela do touro é apenas um touro

carro celeste do fogo e da luz

Apolo a dourar as sombras

ritual eterno entre horizontes

linhas que instigam e atraem

carro celeste do fogo e da luz

que eleva o rosto ao ardor do zênite

que os olhos semicerrados cobiçam

 

não basta a muralha vencida

não basta a serrania distante

sequer bastam as veredas infindas

nada basta ao anseio que devora

quantos há os que buscam o desconhecido

armados apenas de atrevimento

no delírio desdenham da urdidura

e sem conhecer o conluio velado

tem a liberdade contida na permissão

 

o delírio se torna cadafalso

a revoada esmaece sem se lançar

mas há quem resista

do labirinto urbano de paredes e ruas

ao pátio perdido no emaranhado da periferia

nos campos entremeados de farpas

 

asas que afrontam

alçam quem não aceita o destino

nem o acaso do vento

e o voo acontece

único no cenário da solidão

nada mais