Jandaia


1

alma escancarada, tênis encharcados 

ninguém a condescender

sequer a compaixão

 

noite de silêncio urbano 

as marquises roubavam a chuva fina da calçada

soprava um vento entre os vãos da cidade

 

seguia o andar indiferente

maquinal

pensamento estanque e o frio desolado do nada

 

e carregava o desamparo

na distância esticada da perspectiva da Paulista

o desespero a percorrer um cenário irreal 

 

nessa noite de setembro a tormenta irrompeu

as palavras de um fim não condescenderam

fugiria antes se pudesse eliminar o purgatório

 

2

manhã de um domingo

duas orquídeas iluminavam a pequena mesa azulada de cana-da-índia

luz tênue de persiana, café fresco e quietude

 

apenas o medo da felicidade rondava

pronto para armar qualquer defesa num sobressalto incômodo

poucas manhãs como aquela existiam

 

3

da Paulista dobrou à esquerda

a se esgueirar pelos cantos da Brigadeiro Luiz Antônio

e trôpego entrou na Jandaia

 

caminhou a exaurir o corpo até o não pensar

na outra ponta da rua uma porta de um boteco o acolheu 

entrou resto como resto eram os que lá encontrou

 

e resto se deixou num vão da caixaria

cabeça entre  joelhos e olhos soerguidos a sondar

a cidade de tocaia lá fora espreitava 

 

4

Ana, Madalena moravam juntas na noite

profundamente

apenas o dia as separava 

 

fazia muito tempo

não o reconheceram na calçada da praça Roosevelt

apenas a casualidade foi cúmplice

 

seriam as mesmas se a vida fosse feita de repetições

ele não mais

os abraços foram de outro tempo

 

ao que deveria ter se perdido no silêncio

seguiu um incomodo de memória de bar

recordaram pelo alivio que não mais precisavam

 

não havia como serem suaves

ouviu atento e sem interesse

e fingiu não perceber algum embaraço

 

não que não soubesse do enredo

mas pareceu a história de outra pessoa

depois mentiram um chope a marcar

 

5

a cidade seguiu por arcos

esticou para os lados da Paulista 

deixou as casas geminadas e rebatidas

 

da Jandaia ainda dava para ver

a cidade sobreposta aos telhados das casas do baixio 

desperdício de paisagem

 

as calçadas mostravam mais 

pensões que cabiam na gente simples de todas as bandas

e o ar ainda discriminado da diversidade

 

justo onde não deveria importar 

o preconceito entrava pela esquina

mesmo que a cidade houvesse abandonado a todos com igualdade

 

6

pensão

casa fracionada de desenho vernacular sem escolher as caras

corredor escuro prensado entre paredes na penumbra do vitrô imundo

 

Ana, Madalena apareceram na porta da rua

a decadência as convenceu 

passaram a ser parte

 

7

a vida burguesa parecia perdida na mesmice

ela não suportou e adiantou o passo

deixou-se mudar 

 

não que fosse cerceada

a solidão da liberdade a incomodava 

mais do que o vínculo que queria romper

 

mas indolente

presumia a vida submetida aos seus sonhos

e  amava a projeção da sua verdade arrogante

 

ele contornou cada movimento do dilema

talvez vil

até a noite de um setembro

 

8

apiedou-se

os anos de balcão lhe contavam cada história 

mesmo de alguém furtivo entre as pilhas da caixaria 

 

levou-o à pensão

o caixeiro nada tinha a perder além da piedade

e do rádio relógio de uma barganha na praça da República 

 

9

acordou no meio da noite sem entender onde estava

entre azedo do ar e uma luz a vazar pela fresta da porta

de um corredor abafado pelo mofo ardido

 

rememorou

o olhar distante sequer acompanhava a fumaça do fumo

quando apareceram Ana, Madalena 

 

a porta emperrada foi pretexto 

ele se intrometeu e trocou de quarto sem justificar

no que sobrou da noite beberam aos desatinos da vida 

 

o claustro se prolongou

o quarto dos fundos vivia entre segredos 

confidências de insônia e paixões 

 

e paixões não são justas

sequer tem escrúpulos

haviam vivido o bastante para saber disso

 

10

não se sabe como ela acabou no Eduardo’s da Nestor

juntou-se às outras como se fosse assídua também

na noite da tormenta vinha comemorar a decisão

 

a cumplicidade de Ana, Madalena na trama 

impuseram a si acreditar nela por necessitarem ser acreditadas

as três buscavam desafogo num gargalo da vida

 

11

um dia depois

o acaso o colocou na pensão

um juntar acidental de pontas 

 

conversa próxima e banal ouvida na mesa do Avenida

fora das entrelinhas 

tampouco aos sussurros

 

perceberam a história dele

no alivio da amargura dela

Ana, Madalena entreolharam-se assustadas

 

o silêncio deixou a pensão mais distante

mesmo sabendo que não causaram aquelas dores

elas o amaram como um pedido de perdão

 

12

uns dias acordaram paulistanos na rua Jandaia

outros nem tanto

até ele não mais ser visto

 

Jandaia, vinte e um arcos encerrados em porões úmidos

arquitetura de calabreses para arrimo da cidade

apareceram indiferentes depois da demolição do casario

 

13

fazia tempo

na manhã de um domingo qualquer 

ele se espreguiçava num sofá sem culpas