preta num corpanzil
a mentira da boca risonha
a verdade da face vincada
a indiferente troca do viver pela vida
por não entender a importância da sua
por temer o pecado de ser
pela humildade obrigada e refém
doce pela alma ingênua
quem sabe dissimulada a se proteger
atenta às respostas mais que às perguntas
um erro talvez fosse amargo
e se deixava amestrada
senão despercebida
sequer um lamento na boca e nos olhos
crédula a zelar pelo que vinha
pelo chão que herança seria da filha
(mas qual além daquele aos seus pés?)
a fé a carregar seu destino
no ardil da verdade trocada pela esperança
mordaça infame
e quem a pôs na alma sabia
o trem à periferia
horas perdidas num atropelo
depois as vielas e a pinguela do córrego
a marca da água na parede do cômodo
na laje o sol que renega a janela
roupas puídas no varal esticado
bandeiras sopradas no cenário amontoado
quase dia e saia
o corpo cansado não era amante
o parceiro ausente sequer era cúmplice
sabia da filha solta na trama
num rebanho inquieto confinado em vielas
a insistência a sustentar a vida
a mentira a aliviar o fardo
então se cansou das manchas
das vidraças e panos
da sordidez da porta dos fundos
cansou do sim que não queria
do banal das promessas
do caminho entrevado
do dia seguinte
olhou a mãe como uma menina acuada
corpo em sangue e prostrado
o corpanzil desabou
mas não houve lamento culpando o destino
lavou o corpo franzino no amparo do braço
beijou os pés pequenos pedindo perdão
descartou a esperança que iludia e feria
aliviar a culpa no sangue na lâmina
atônita pelo abandono na hora da fé
se pôs errante escondida nos becos
a vagar pelo inferno que tinha evitado
nas ciladas dos favores que nunca cobrou
até se prostituir numa esquina qualquer
assim se engajou na guerrilha sórdida
que ferina nasce em cada porão
vertida nos vãos da cidade doente
e rastejou na lama viscerosa das ruas
rejeitou a mentira mordaz que o medo impôs
sem lamentar cada dia que havia negado
verdade que sua nunca teve dono