Manhã de chuva


um dia cinza e chuvoso que nem por isso deixou de ser lindo

não vejo as arvores tristes ou menos iluminadas

apenas silentes na vastidão que se impõe ao meu muro 

mas sei que uma vida velada pela casca indiferente flui no lenho

caudal como toda aquela que envolve a natureza

e se constrói infinitamente em cada detalhe da sua criação

o que estimula tanto essa constante busca pela perenidade? 

 

sou parte deste pequeno cenário há muito tempo 

e o tenho já pela manhã no ritual dos meus dias

o café é uma oração na mesa da varanda mais que o hábito

neste dia de chuva estava aos pensamentos

e acabei por pelar a minha boca 

 

como o voo de uma libélula, o olhar esmiúça folhas e asas, insetos e flores

a leveza do vento, os aromas e odores, um ninho de abelhas escondido num canto

as flores da limeira em novembro que podiam ser de setembro ou outubro 

o ingazeiro soberbo e cúmplice das maritacas na tagarelice matinal

cuspindo as sementes das favas sem quaisquer pudores

uma bandeja de frutas da Zi numa forquilha da ameixeira e os sanhaços e tiês azuis 

nas mesmas ramas que se enroscam os saguis das matas do fundo 

os jacus que se foram com os últimos frutos da amoreira 

mas a graviola está carregada ao lado da jabuticabeira 

junto com um araçazeiro delicado de galhos finos 

parecem as cânulas pernas dos sabiás que anunciam a madrugada

mudas que os sentimentos da minha mulher trouxeram a contar da sua infância

eu escolhi a uvaia por lembrar meu pai e seu corte me trouxe o remorso

 

tantas manhãs que são e a natureza não clama por apenas ser

o pomar misturou as frutas sem discriminação 

desenho perfeito do acaso e indiferente às injustiças

contemplar é o que me resta no outono dos meus dias

não há mais tempo de semear outro pomar

mas pouco mudaria se o tempo recuasse

talvez fosse diferente se tivesse consentido ao poeta os traços do desenho

 

a vida se constrói infinitamente em cada detalhe da sua criação

o padrão de cada forma se repete sempre e exaustivamente  

não sei se o estÍmulo tem um fim e desiste de investir

se há um tempo afixado num complexo mecanismo da existência

ou apenas há o acaso que carrega a vida entre sortes e infortúnios

 

eu prefiro as pertinências do acaso se é que eu possa escolher 

não é uma questão de romantismo

gosto das manhãs da minha varanda e dos meus muros

e se a imensidão me procura para soltar a alma

eu me perco nas areias brancas de Juquehy 

onde as dores contemplam a serenidade interminável dos azuis


entremuros por desistência absoluta do homem social sei que a miséria grassa 

que não há dilema entre o desespero e a fome que corrompe

que não há dilema entre a harmonia  e o arroto da pança cheia 

do meu lado do muro não me corrompem a felicidade

tampouco as notícias que o poder manobra

tenho apenas que tomar cuidado para o café não pelar a minha boca

e não me iludir com o frescor de uma manhã de chuva