A outra varanda ou curvas e retas


em frente da minha casa há uma estrada

sei de onde vem 

segue pela imaginação urdida pelas emoções 

e serpenteia entre vales e morros, por medos, desditas e lembranças

pelas curvas que se atrevem aos crédulos

e aos incrédulos que só acreditam nas retas

 

retas que guardam segredos apenas aos míopes

despidas de mistério e da curiosidade banal

chão modorrento, monótono 

que num dia claro sequer embaça o ponto de fuga

se as curvas trazem a expectativas 

é nas certezas das retas que são feitas as orações

 

à beira não há como não ver a andança dessa eterna romaria

gestos e mímicas como num cinema mudo 

confesso que julgo alguns mesmo vendo o fardo que carregam

como se o confessar me isentasse deste e de tantos outros pecados

o julgar persevera por mais que a boca insista em permanecer calada

olho para os lados pelo embaraço dos meus pensamentos 

 

há uma estrada em frente à minha casa      

casa como aquela riscada pelos meus netos na inocência dos primeiros traços

uma varanda de quatro linhas bastou para assentar uma cadeira 

de onde assisto a ansiedade dos apressados pela chegada

lamento os prazeres desprezados durante o caminho 

por não cultivarem o tempo que a celeridade perde

 

passam os que vão onde não sei e aqueles que sei onde irão

os que se tornaram as lembranças que não quero deixar

muitos tão caros que desejaria que voltassem 

alguns a quem meu coração se rendeu

outros cujo ódio não foi perpétuo, mas nunca me arrependi

tantos que eu gostaria de reencontrar 

 

o tempo que me resta cabe nesta varanda 

a eternidade que herdei como elo já passei à frente 

gostaria que levassem também esta mão que escreve

sei que vou cair no esquecimento natural dos que não me conheceram

os escritos não bastam à memória que cobra a presença

e não me arrependo das palavras lançadas mesmo sem saber a que vêm

 

apenas versos que contam a história de uma varanda

poemas que iam se perder e acabaram nas folhas

em nada alterariam coisa alguma se perdidos

os versos não são alimento do corpo

não transformam água em vinho, apenas relatam

talvez sejam para as almas dos que não precisam de comida

 

a procissão passa ao largo

nos ombros, os andores sustentam a fé dos que ainda insistem

tempos de convulsão e de degraus soltos

sem qualquer lucidez que ilumine a humanidade desamparada

tempos em que o salvador apenas aparenta a verdade 

mas não há como mudar enquanto houver esta semente em um só homem

 

sem enveredar por conspirações e sequer tomar atitude alguma

apenas arrimei os filhos do atropelo de bandos que medram

mas choro pelos netos preocupado com o escárnio que a humanidade consagra

se não empunho as armas que deveriam ser levantadas

também não espero um fim covarde e silencioso numa varanda emudecida

mesmo porque a idade não é fraqueza, apenas uma vulnerabilidade

 

comigo tantos seguiram l'armata Brancaleone 

canções em tom maior a levantar os ânimos e a enriçar a pele pela emoção

hoje viça o desdém da maturidade na lembrança de toda aquela luta

mas não haveria o poeta sem aqueles dias

os dilemas conflitam a existência já arqueada com seu próprio peso

as curvas e retas são apenas escolhas