A viagem


uma tropa aparentava zanzar no valo sem rumo 

não conhecesse a trilha e seu ponteiro se perderia

um homem a romper a persistência rude e inclemente

foice a sangrar picadas na floresta e a impor caminhos  

mata que do contraforte ocupou todo o altiplano

e trouxe a serração do lagamar a velar a andança 

 

umidade e calor, poças podres de águas estagnadas

floresta tropical profusa, infrene e inesgotável

tropeços em raízes, cipós, galhos a se entrelaçarem

a embaraçar o andar lento e arrastado pela quebreira

o conflito entre abandonar a tropa e fugir do inferno

afligia o pensamento do peão cansado da viagem

 

o tropeiro sem puxar seus muares pelo cabresto

deixava a tropa solta na cadência da caminhada

não havia como se dispersar pelas laterais

e os de trás empurravam os da frente pela picada

o silêncio apenas era rompido pelo bufar

resmungos e pelo tilintar do aço da foice afiada

 

da altura de um homem se retalhava a picada prima

mas a galharia acima atravancava e impedia a sela

os pés descalços já não mais sangravam no couro grosso

chão que batido pelos animais se fazia em lama

um tijuco preto apodrecido escondia os cepos

barro grudento que a tropa piorava ao amassar

 

o ponteiro ansiava encontrar um vau no rio do banhado

a agua se dissipava entre as taboas do brejo na trilha

se a carga sobre os lombos enroscava no valo estreito

no charco o peso da carga prendia a mula assustada

se romper o enganche era se ferir entre o muar e a mata

desatolar um animal nervoso implicava em coices

 

um breu de nuvens negras assustou e trouxe a noite

aliviados na clareira de uma roça e na luz do fogo

deixaram-se à carne seca com angu antes do pelego

ajeitaram a pala no corpo exausto e por fim dormiram

o arraial adiante já estava perto apenas um dia

o sol os pegou ainda no negrume quando já iam longe

 

o peabiru levava a tropa a andar sem dificuldades

o arraial da capela dos godoys vinha logo adiante

Nossa Senhora do Monte Serrat da Cuthihy 

no alto do rossio na campininha beira do rio

e o casario primitivo e rústico de pau a pique 

de humildade singela e de sapé como a capela era

 

a rua de olhos em cada clarão espreitava a marcha

infinda aquela procissão de muares e o imaginário

em cada refrão se trovas de viola a cantar a andança

no curral sem as garras do jaguar deixaram-se à calma

exaustos desencilharam as bestas já arquejadas

e se deixaram ao léu naquele arraial perdido na mata

 

embriaguez para comemorar a superação

depois de tanto a entrega mundana a uma mameluca

por fim o cansaço teve lugar no que foi a noite

esquecida nos trapos de uma cama, palha já amassada

verdades e mentiras tão confusas a culpar o álcool

dores curadas por risos e abraços já esquecidos

 

nas cinzas da noitada o fumaçar na manhã fria

no arraial ainda silente o tropeiro de mãos na lida

esperava o aprumo da sua gente para o carreiro

muares nos arreios, viola no saco, lâminas afiadas 

as armas perto das mãos não escondiam a verdade

nas veredas o perigo dos homens era o pior 


se São Paulo distava pouco ou muito diria a chuva

caminho a depender de vaus de rios e das encostas

mesmo se mais clemente era inóspito e incerto

e entre Cuthihy e Pinheiros um rio caudaloso e largo

se intenso o Jurubatuba drenava a serra do mar

se plana a várzea traçava meandros no lodaçal

 

cinco dias a vencer a floresta ou mais se chovesse

Nossa Senhora do Monte Serrat dos Pinheiros

esperava no largo quem do oeste trazia a fé

e depois da subida ao espigão no caaguaçu 

a vila de São Paulo surgia ao leste como uma luz

São Roque havia ficado distante, lá em Santo Antônio