passo um portal sensorial e atravesso a um outro universo
descubro um silêncio indiferente aos meus passos
sequer ouço o som deixado atrás da imensa porta
o ar gelado toca o rosto antes dos olhos entenderem
e me surpreendo com um imenso bojo atemporal de uma nave
iluminação teatral e esmaecida pelos vitrais sujos e desbotados
e a coreografia das sombras que as candeias avivam
a penumbra se ilusão de um véu arremata o cenário
causa a insensatez dos sentidos e um calafrio enriça a pele
um ofego acontece como fosse um apelo
apenas o eco de um som qualquer detém o arrebatamento
paredes atravessaram os séculos dos homens
com segredos contidos nas pedras a se revelarem
em orações garatujadas no reboco e perdidas em algum desespero
sigo ao retábulo na perspectiva infinda da nave
numa imensidão a impor o divino ao homem
e me apequeno na geometria soberba e celestial
monumento de veneração a clamar a fé
incitado o engenho na arquitetura das colunas, arcos e abóbodas
mas também o poder e a derrota velados na lavra das pedras
expõem as cicatrizes dos ombros lacerados pelas chibatas pagãs
envolvem-me sensações a enredar com o assombro
e o odor acre do ar estagnado não permite que me concentre
sequer o incenso a iludir o mofo secular não alivia o conflito dos sentidos
ajoelho-me num genuflexório como se fosse obrigado
o pensamento se apenas meu divaga mais do que se prostra
confuso, acabo cedendo ao credo que me orientou
e às preces involuntárias e recorrentes
no rito da consagração, o toque que Michelangelo omitiu na capela Sistina
eis o milagre da fé, dogma em uma frase singular justificando o credo
adoração que procuro profanada pela dúvida
culpa que carrego pelas ciladas do pensamento
e a serenidade perdida nas imposições do claustro
saio intranquilo do portal sensorial aos dias que são meus
resta apenas a memória da catedral que a arquitetura do homem erigiu