há tempos em que tenho preguiça de escrever
ir à mesa parece uma jornada
e há um esforço penoso em procurar um assunto
frente ao janelão que vaza o dia vadio
debruço vazio sobre uma manhã chuvosa
nem serenidade, nem quietude, apenas a ausência
um silêncio a ser preenchido e as copas caladas
folhas molhadas e pingos insistentes
nas poças os círculos prendem os olhos
mas prefiro a memória que vaga pela preguiça
como a encher uma meia furada de bosta e gira-la
a mente desalinhada e dispersa
então algum detalhe me transporta a Lisboa
e me vejo naquela arquitetura preguiçosa e ordinária de suas ruas
casarões enfileirados sem compaixão, sem vãos e sem graça
passo pela casa de Pessoa na Coelho da Rocha
esquecida entre o joio se não fosse uma placa sem brilho
outra rua indiferente a oferecer a mesma Lisboa
a memória se acomoda num café do jardim da Parada
quisera Pessoa estivesse sentado aí a ser poeta
velhos tempos que ficaram nos Prazeres. À Pessoa, os Jerónimos
sem qualquer razão volto à janela que sem novidades me olha
insistem o silêncio e a chuva miúda e incômoda de Dublin
no guarda-corpos da ponte Samuel Beckett levo o olhar ao Liffey
em outra ponta a ponte da Mulher em Puerto Madero acolhe
a fragata de velame arriado e ancorada na história
atravesso e sigo ao Café Tortoni para ouvir Jorge Luiz Borges
a chuva persiste neste silencio onde estou imerso
continuo a rodar a memória sem qualquer sentido e lógica
mesmo porque a indolência persiste e gosto
a chuva acalanta e invade o silêncio
não há porque escrever linha alguma sequer que signifique
em tempos de solidão poética insiste a amargura dos homens