O ócio e a espera


sentado na praia os olhos espicham à curiosidade que se atreve                        

mesmo porque contemplar é o que apenas resta ao ócio ungido pela razão

com a bunda em uma espreguiçadeira assisto tedioso ao entardecer

a noite recorrente e qualquer traz a brisa que suaviza o ardor da pele

 

na tocaia do promontório a luz do farol pulsa e cega a cuia celeste

e de instante a instante perco as estrelas na mira dos olhos apertados

um reflexo de fotografia incide sobre a monotonia da água

clichê tão inevitável e comum como um postal de banca de jornais

 

se o óbvio não interessa e está lá apenas por estar como estão outras coisas

a indolência que me toma faz parte desse cenário e não o pensar

a letargia insistente resiste à vontade pálida e amolengada

e me deixo num afrouxo como um saco de batatas à toa em um canto 

 

aí o pensar incomoda e se limita ao olhar sutil que percorre a praia

nada além de um jeito dissimulado como se nunca houvesse este olhar

sandices do ócio que sente seu fim na noite inevitável que me acolhe 

o que resta eu ouço das ondas que quebram, calado o burburinho avesso

 

se nem sempre o oceano ordinário espalha suas fraldas nas areias inocentes

vez ou outra vejo sua fúria incontida nos rochedos daquele farol

impossível banalizar beleza tamanha mesmo à indolência no mormaço

aos poucos as pessoas tomam um rumo e retomo a condição do pensar



Os imigrantes


duas caldeiras que resfolegando um navio movido à vapor e velas

ainda resquícias, a levar um barco tão abarrotado de refugiados

sob a lona no convés escaldante do sol a pino a ferir os pés

na dança alegre que esconde a tristeza, viveu a fé ao paese di cuccagna

 

no oceano interminável, o medo era companheiro das tempestades

quem criado em encostas e vertentes se perdia nas águas sem fim 

nem orações aquietavam a aflição da alma arrependida pela jornada

e nas redes da terceira classe as náuseas dormiam entre dores e sonhos 

 

quarenta dias da incerteza insólita fustigando cada esperança

a quem ficou era como tivessem morrido no cais já no embarque

a miséria deixada nas aldeias esvaziadas não se fez de consolo

da pobreza nada restou além das lágrimas e do aceno de adeus 


instigados pelo clamor que último vendia o delírio no porto 

o que o afogo aceitava por verdade, a verdade os tratava por carga

foi o que compraram para embarcarem com os restos dos trapos e dores

na ilusão da eterna graça num porto onde o sol seria a têmpera da terra

 

acumulada no cais toda a poeira batida dos sapatos tão rotos 

a esperança cruel ao criar sonhos, mas doce ao iludir os pesadelos 

no bojo amontoado de um barco imundo sequer essa esperança esvaiu

nem o fedor confinado acabando por fazer parte do pensamento

 

e se imaginavam dever à América, era ela quem deles precisava

as terras vazias e abandonadas pelos escravos, negros libertos

se lhes respaldassem com as pagas justas, não se perderiam os campos

ficaram aos italianos suas terras e as chagas da escravidão maldita

 

quem tornaria à Itália na alegria do voltar e perderia as conquistas?

e não existiam mais as antigas aldeias e os vinhedos cultivavam os jovens 

as promessas que o cais ouviu jamais seriam cumpridas mesmo as de amor

dos que ficaram não houve aventura alguma a não ser esperar a safra 

 

não importava o retorno de quem foi, a não ser nas gerações que ouviram

a nostalgia, se herança de velhos, alimentou a imaginação fértil

e as histórias da colônia sabidas na ponta da língua se perderam

quando não foram encontrados os contos há muito tão desenrodilhados



O verbo restar e o verbo viver


usa-se o verbo restar quando nada há além do final

e o verbo viver quando estes dias forem intermináveis e surpreendentes

apenas a escolha importa se o final incidental é inevitável e abstrato

o que não justifica o verbo restar e sua insólita desesperança

 

o verbo viver reage pelo estímulo da eternidade que se pensa ter 

e que leva a vida a seguir sempre pela revolução de cada dia

como se sempre houvesse o leste para receber o amanhã 

instinto que resiste mesmo com a insistência do verbo restar

 

o verbo restar instiga o desânimo nas quedas

ainda que a desistência seja tão mais simples do que a persistência 

até nas perdas insignificantes e sequer consideradas

e o conflito criado nem sempre é superado pelo verbo viver



Caminhos cruzados

(um soneto antigo que encontrei entre meus papéis)

 

uma noite solta na mesa de um bar

e um blues a sussurrar velando as palavras

fora o frio marcava a vidraça de estrelas

nem vi aquela lua. Você estava comigo

 

a noite intrigada com a luz do seu rosto

o azul dos seus olhos. E havia o silêncio

de um segredo contido que eu encontrei

tão perdido naquele canto de boca

 

calado e atento o olhar seguiu as palavras

e as reticências insinuadas nas pausas

traziam um suspense mordente e injusto

 

então o fim sem lágrimas ou por quês

seguido de um longo e dorido vazio 

caminhos cruzados onde ardem as paixões



Os Reis Magos


reviver as profecias de Seth nas janeiras cantadas pelas levas

escancarar as portas e janelas não só pelos novos ares que sopram 

aguardar ao menos a vã esperança que o anterior perdeu na caminhada

deixar nas ruas as cinzas do adeus para serem expurgadas no Tejo

 

assumir a fé como estrela guia não o acaso da sorte que desmerece 

a mesma estrela que na anunciação avocou aqueles que acreditaram

quantos seguem esses passos se creem sem as dúvidas que arbitram o homem

Gaspar, Baltazar e Melchior deixaram-se ao caminho pela profecia

 

Gaspar se jovem, das bandas do Cáspio, à beira das aguas interiores

Baltasar, o mouro, da Arábia imensa de desertos áridos e ardentes 

Melquior, um ancião caldeu do reino de Ur, já alquebrado na peregrinação

mais sábios e eruditos do que simples reis limitados ao chão dos pés

 

palavras soltas no ar são dispersas, jamais emudecem se lançadas

não como a seta atirada, que sempre mesma, encontra o destino distante

e se a fé importou, então se fez arco da palavra lançada pois seta

entre as estrelas da noite oriental seguiram a que Seth arremessou

 

nos arredores da aldeia, José e Maria no resguardo de um presépio 

longe da soberba dos arcos e abóbodas, nada além do chão batido e tosco 

era suficiente a noite ponteada, domo celeste sobre as cabeças 

e a Luz simples e divinal nos braços de Maria de Jerusalém

 

o anúncio da vinda do Salvador clamada desde os tempos primordiais

viajou pelos caminhantes a errar pelas terras áridas do oriente 

passando por aquelas de Dario e Alexandre e depois de Otávio Augusto

de tantos outros que sequer ouviram o pregar dos profetas ao povo

 

em um canto da sala está o presépio e a memória basta como oração

a imagem de cera e madeira trouxe junto gerações de devoção 

e repousa na palha do desvelo coberto por um trapo de linho

qual pecado o pintinho do Menino Jesus traria à sua nudez?

 

quisera a mesma fé que levou os reis magos à certeza do encontro

e percorreu um infindo tempo até aquele canto iluminado da sala 

e na serenidade do presépio debruço sobre esta longa história

então esqueço a agonia dos dias que deveriam iluminar os homem


Preguiça de escrever


há tempos em que tenho preguiça de escrever
ir à mesa parece uma jornada
e há um esforço penoso em procurar um assunto 
 
frente ao janelão que vaza o dia vadio
debruço vazio sobre uma manhã chuvosa
nem serenidade, nem quietude, apenas a ausência
 
um silêncio a ser preenchido e as copas caladas 
folhas molhadas e pingos insistentes
nas poças os círculos prendem os olhos
 
mas prefiro a memória que vaga pela preguiça
como a encher uma meia furada de bosta e gira-la
a mente desalinhada e dispersa
 
então algum detalhe me transporta a Lisboa  
e me vejo naquela arquitetura preguiçosa e ordinária de suas ruas
casarões enfileirados sem compaixão, sem vãos e sem graça
 
passo pela casa de Pessoa na Coelho da Rocha 
esquecida entre o joio se não fosse uma placa sem brilho 
outra rua indiferente a oferecer a mesma Lisboa
 
a memória se acomoda num café do jardim da Parada
quisera Pessoa estivesse sentado aí a ser poeta
velhos tempos que ficaram nos Prazeres. À Pessoa, os Jerónimos
 
sem qualquer razão volto à janela que sem novidades me olha
insistem o silêncio e a chuva miúda e incômoda de Dublin
no guarda-corpos da ponte Samuel Beckett levo o olhar ao Liffey 
 
em outra ponta a ponte da Mulher em Puerto Madero acolhe
a fragata de velame arriado e ancorada na história
atravesso e sigo ao Café Tortoni para ouvir Jorge Luiz Borges 
 
a chuva persiste neste silencio onde estou imerso 
continuo a rodar a memória sem qualquer sentido e lógica 
mesmo porque a indolência persiste e gosto
 
a chuva acalanta e invade o silêncio
não há porque escrever linha alguma sequer que signifique
em tempos de solidão poética insiste a amargura dos homens 


Whitney Houston


ouço Whitney Houston 

penso nas escolhas que a vida não lhe deu

e me pergunto

como é possível alguém escolhido não ter escolhas?

 

mas, então me dou conta do que pensei

como me referisse a um instrumento

um violão, um piano, um trompete

mudos depois do embriago da música

demência a alucinar no curto tempo das notas

depois do último compasso 

apenas o eco se esvaindo no silêncio

e o veludo vermelho de um estojo 

 

das dores dissimuladas pelos olhos de atriz

assim que desnudas no camarim 

havia pouco da perfeição do espetáculo

nem as lágrimas que pareciam pertencer aos aplausos

a diva iluminada do palco

então no escuro de um canto

era apenas Whitney



Ushuaia (espanhol)


los picos nevados encantan el cerro 

al pie Ushuaia reposa serena y calma

un trozo de tierra apretado y estrecho 

entre la cordillera y aguas heladas

 ni Atlántico o Pacífico apenas Beagle 

del mirador de las Martials veo el muelle

y las luces de la ciudad en la bruma

que envuelve el rápido ocaso de la Antártida


en Tierra del Fuego arde el fin del mundo

allá el nada nunca existió y ni el fin

navego en la vida intensa del estrecho

un viento glacial sopla cortante e insiste

busco los pingüinos en la Isla Martillo

mismo camino de las velas del Beagle

de FitzRoy y Darwin y otros aventureros

in rastro de la ambición insana y feroz

 

los pueblos nativos fueran de los campos
más allá de islas y de cerros nevados
más allá del pecado original y dolo
de vallas que callaron la libertad 
por veredas donde seguían sin rumbo 
apenas vivían el placer de vivir
nunca entendieran los límites de púas
fueron cazados sin cualquier compasión
 

 como recriminar aquella vileza

si las heridas aquí aún estan abiertas

dolores tan mismos de lágrimas mudas

a confesar la crueldad de la bestia

 mismo silencio donde medran disculpas

 un cadalso en el suelo que nos dio un país

 donde el miedo ahoga la vida vaciada

 de los que jamás verán ese paraíso



Ushuaia


os picos nevados encantam o cerro

ao pé Ushuaia repousa serena

uma nesga de terra premida e estreita

entre a cordilheira e as águas geladas

nem Atlântico ou Pacifico apenas Beagle

do mirante das Martials avisto o cais

e as luzes da cidade entre a neblina

que envolve o rápido anoitecer da Antártida

 

na Terra do Fogo arde o fim do mundo 

lá o nada nunca existiu e nem o fim

navego pela vida intensa do estreito 

um vento glacial sopra cortante e insiste

busco os pinguins na ilha Martillo

o mesmo caminho das velas do Beagle

de FitzRoy e Darwin e outros aventureiros

no rastro da ambição insana e feroz

 

os povos nativos partiram dos campos

além das ilhas e dos cerros nevados

além do pecado original e dores 

de cercas que calaram a liberdade 

nas veredas onde seguiam sem rumo 

apenas viviam o prazer de viver

nunca entenderam os limites de farpas

foram caçados sem qualquer compaixão

 

como recriminar aquela vileza

se as feridas donde venho inda estão abertas 

dores tão mesmas de lágrimas mudas

a confessar a crueldade da besta

e o mesmo silêncio onde medram desculpas

um cadafalso no chão que nos deu um país 

onde o medo sufoca a vida esvaziada

dos que nunca verão aquele paraíso



Patagônia

 

sigo por campos desconhecidos nas terras argentinas

até os limites da cordilheira onde o Chile encosta

na planície da patagônia que se abre infinita aos meus olhos

me cobriria um céu de azuis e estrelas não fosse a cerração soprada dos glaciares 

massa cinza que envolve El Calafate entre um cerro e o lago Argentino

cada plano desta natureza encanta e transforma o olhar

e no desolamento de um grande deserto marrom que falso

a vida é vigiada pelos ancestrais tehuelches e pulsa incontida e perene 

 

não há vazio que a natureza permita 

na estepe os arbustos tomam a cor do chão inóspito e acerbo

velam guanacos, nhandus, zorros e toda vida que permeia

junto aos rebanhos de ovelhas de lã tingida pela poeira soprada 

mesmo o puma nesse mimetismo que trama

se perde da caça que ilude seus olhos felinos

no alto a testemunha do condor impera sua soberba 

mas não encontro solidão onde o silencio apenas é cortado pelo vento

 

a linha negra segue na vastidão como se sempre estivesse lá

e por mais que o carro corra parece não se mover na reta infinda

ao longo daquele lago imenso de margens sinuosas e coleantes

um imenso bloco de gelo jaz nas águas, um topázio com desdém à perenidade 

imagem insólita a quem sempre teve a serra do mar nos olhos

mas de súbito surge o glaciar e uma beleza etérea arrebata os sentidos 

e se desfazem as palavras tomadas pela natureza extremada e singular 

um azul que eu desconhecia penetra a minha alma

 

da janela do hotel vejo El Calafate a se debruçar sobre o lago Argentino

lá fora o vento patagônico soprado dos campos de gelo acossa

fere a pele e sopra como fosse arrancar as pedras do chão

os álamos dobram e a irritação das águas quebra o espelho

um cenário aberto profundamente traz os pensamentos

volvem poemas de tantos poetas desta América enjeitada

a cantar a beleza das terras mesmo em um continente repartido

mas a diversidade dos povos não é o que nos separa neste chão americano



Sobre netos e avós

(ao Henrique e ao Guilherme, para quando entenderem estas palavras)

 

são dois netos 

um só útero

e se diferentes são iguais

um entre o silêncio e o olhar

o outro entre a inquietude e a irreverência

ainda assim são iguais

e se preenchem com o que os olhos veem

com o que os ouvidos ouvem

com o que os corações sentem e proclamam

 

mesmo longe de decifrar cada devaneio

sei que se importam comigo

como eu me importava com os meus avós

se o envolvimento indica a perenidade do elo

não haveria razão para ser refeito à cada encontro

mas a regra se sobrepõe ao sentimento

o que não me convence

ao avô o sentimento vem antes da regra

 

anos nos separam

uma vida de pais e duas de avós 

um tempo curto para mim 

para eles imenso se maior do que o de suas próprias vidas

e quando passam por mim correndo 

indiferentes da obrigação de um beijo

é a generosidade da idade

a que estabelece o olhar do avô

que entende a pressa e a aflição

há o tempo incessante e o que ele esconde para desvelarem



Dias indiferentes


há dias indiferentes e que não encantam 

sem importância, sem rumo, sem brilho

a natureza de uma manhã insípida 

sequer tem o movimento do vento a esmiuçar os vãos

o ar parado traz a impressão de que algo esta para acontecer

 

as pessoas se arrastam cabisbaixas pelas ruas

os rostos se tornam mais vincados se traídos pelo desalento

o nada é maior que chorar 

mas se não fosse não haveria lágrimas 

e chorar sem lágrimas continuaria o nada em sua ausência

 

então percorro segredos que deveriam ser esquecidos

aqueles que quando os olhos calassem permaneceriam selados

é que nos dias indiferentes o pensar é inevitável

e os segredos que deveriam ser esquecidos retornam

assim como as histórias que não se esconderam neles

 

os dias indiferentes não se sustentam

não criam lastro, não tomam segredos

passam sem gosto, sem o que os marque na memória

mesmo porque os dias indiferentes são reclusos

e logo se perdem entre outros que contam

 

recolhido em mim o olhar é curto e baço

não há expressão no rosto rígido 

mesmo o mármore traz a emoção dos cinzéis

os dias indiferentes são assim

talvez não contem no correr de uma vida



Catedral


passo um portal sensorial e atravesso a um outro universo

descubro um silêncio indiferente aos meus passos

sequer ouço o som deixado atrás da imensa porta

o ar gelado toca o rosto antes dos olhos entenderem

e me surpreendo com um imenso bojo atemporal de uma nave 

iluminação teatral e esmaecida pelos vitrais sujos e desbotados

e a coreografia das sombras que as candeias avivam 

 

a penumbra se ilusão de um véu arremata o cenário 

causa a insensatez dos sentidos e um calafrio enriça a pele

um ofego acontece como fosse um apelo

apenas o eco de um som qualquer detém o arrebatamento

paredes atravessaram os séculos dos homens

com segredos contidos nas pedras a se revelarem

em orações garatujadas no reboco e perdidas em algum desespero 

 

sigo ao retábulo na perspectiva infinda da nave 

numa imensidão a impor o divino ao homem

e me apequeno na geometria soberba e celestial

monumento de veneração a clamar a fé 

incitado o engenho na arquitetura das  colunas, arcos e abóbodas 

mas também o poder e a derrota  velados na lavra das pedras

expõem as cicatrizes dos ombros lacerados pelas chibatas pagãs

 

envolvem-me sensações a enredar com o assombro 

e o odor acre do ar estagnado não permite que me concentre

sequer o incenso a iludir o mofo secular não alivia o conflito dos sentidos

ajoelho-me num genuflexório como se fosse obrigado

o pensamento se apenas meu divaga mais do que se prostra 

confuso, acabo cedendo ao credo que me orientou

e às preces involuntárias e recorrentes 

 

no rito da consagração, o toque que Michelangelo omitiu na capela Sistina

eis o milagre da fé, dogma em uma frase singular justificando o credo

adoração que procuro profanada pela dúvida

culpa que carrego pelas ciladas do pensamento

e a serenidade perdida nas imposições do claustro

saio intranquilo do portal sensorial aos dias que são meus

resta apenas a memória da catedral que a arquitetura do homem erigiu



A viagem


uma tropa aparentava zanzar no valo sem rumo 

não conhecesse a trilha e seu ponteiro se perderia

um homem a romper a persistência rude e inclemente

foice a sangrar picadas na floresta e a impor caminhos  

mata que do contraforte ocupou todo o altiplano

e trouxe a serração do lagamar a velar a andança 

 

umidade e calor, poças podres de águas estagnadas

floresta tropical profusa, infrene e inesgotável

tropeços em raízes, cipós, galhos a se entrelaçarem

a embaraçar o andar lento e arrastado pela quebreira

o conflito entre abandonar a tropa e fugir do inferno

afligia o pensamento do peão cansado da viagem

 

o tropeiro sem puxar seus muares pelo cabresto

deixava a tropa solta na cadência da caminhada

não havia como se dispersar pelas laterais

e os de trás empurravam os da frente pela picada

o silêncio apenas era rompido pelo bufar

resmungos e pelo tilintar do aço da foice afiada

 

da altura de um homem se retalhava a picada prima

mas a galharia acima atravancava e impedia a sela

os pés descalços já não mais sangravam no couro grosso

chão que batido pelos animais se fazia em lama

um tijuco preto apodrecido escondia os cepos

barro grudento que a tropa piorava ao amassar

 

o ponteiro ansiava encontrar um vau no rio do banhado

a agua se dissipava entre as taboas do brejo na trilha

se a carga sobre os lombos enroscava no valo estreito

no charco o peso da carga prendia a mula assustada

se romper o enganche era se ferir entre o muar e a mata

desatolar um animal nervoso implicava em coices

 

um breu de nuvens negras assustou e trouxe a noite

aliviados na clareira de uma roça e na luz do fogo

deixaram-se à carne seca com angu antes do pelego

ajeitaram a pala no corpo exausto e por fim dormiram

o arraial adiante já estava perto apenas um dia

o sol os pegou ainda no negrume quando já iam longe

 

o peabiru levava a tropa a andar sem dificuldades

o arraial da capela dos godoys vinha logo adiante

Nossa Senhora do Monte Serrat da Cuthihy 

no alto do rossio na campininha beira do rio

e o casario primitivo e rústico de pau a pique 

de humildade singela e de sapé como a capela era

 

a rua de olhos em cada clarão espreitava a marcha

infinda aquela procissão de muares e o imaginário

em cada refrão se trovas de viola a cantar a andança

no curral sem as garras do jaguar deixaram-se à calma

exaustos desencilharam as bestas já arquejadas

e se deixaram ao léu naquele arraial perdido na mata

 

embriaguez para comemorar a superação

depois de tanto a entrega mundana a uma mameluca

por fim o cansaço teve lugar no que foi a noite

esquecida nos trapos de uma cama, palha já amassada

verdades e mentiras tão confusas a culpar o álcool

dores curadas por risos e abraços já esquecidos

 

nas cinzas da noitada o fumaçar na manhã fria

no arraial ainda silente o tropeiro de mãos na lida

esperava o aprumo da sua gente para o carreiro

muares nos arreios, viola no saco, lâminas afiadas 

as armas perto das mãos não escondiam a verdade

nas veredas o perigo dos homens era o pior 


se São Paulo distava pouco ou muito diria a chuva

caminho a depender de vaus de rios e das encostas

mesmo se mais clemente era inóspito e incerto

e entre Cuthihy e Pinheiros um rio caudaloso e largo

se intenso o Jurubatuba drenava a serra do mar

se plana a várzea traçava meandros no lodaçal

 

cinco dias a vencer a floresta ou mais se chovesse

Nossa Senhora do Monte Serrat dos Pinheiros

esperava no largo quem do oeste trazia a fé

e depois da subida ao espigão no caaguaçu 

a vila de São Paulo surgia ao leste como uma luz

São Roque havia ficado distante, lá em Santo Antônio